Friday, September 16, 2005

"Outubro" e o estilo cinematográfico de Eisenstein


A redescoberta das origens do cinema é uma atividade que tem concentrado esforços nos maiores pólos de produção de arte no Ocidente. Muito presos, até pouco tempo, a uma interpretação estritamente hollywoodiana da cinematografia, os estudiosos acabam por se surpreender com modelos de filmar completamente diversos àqueles a que estão acostumados.

Um expoente desta nova caminhada em procura do passado é “Outubro”, de Sergei Eisenstein. Produzido sob encomenda para celebrar a consolidação do regime socialista soviético, o projeto representou, para o diretor, um duplo desafio. Por um lado, era necessário ser fiel aos fatos, dado que o provável público, em grande parte, vivera ativamente os acontecimentos de fevereiro e de outubro. Por outro, e talvez este predominasse, era importante inserir a obra no planejamento de “cinema intelectual” que Eisenstein abertamente privilegiava. Para solucionar os problemas, a via encontrada foi uma inovação dentro do próprio mise-en-scéne habitual do realismo, dando margem a técnicas tão criativas quanto diferenciadas.

Entre estas estratégias, destacam-se algumas que ajudaram a tornar “Outubro” um filme atemporal – a despeito de um quase convite à ridicularização que o pouco contato com a ausência de diálogos falados, com a fotografia escura e com a movimentação mais lenta das câmeras proporciona. É o caso, por exemplo, do ‘typage’, um modelo rascunhado em “O encouraçado Potemkim”, mas realmente só fortalecido aqui. Dentro desta prática, cabia ao diretor escolher os atores cujos traços físicos pudessem ser mais claramente associados às classes sociais personagens do roteiro. Muito graças a ela, desenvolveu-se a curiosa crença (talvez verdadeira) de que vários figurantes de “Outubro” haviam de fato exercido papéis de relativo destaque nos eventos de 1917.

Igualmente interessante é a nítida valorização que Eisenstein confere, em sua fita, à tese do “cine-punho”. Opondo-se a Vertov, que preferia uma análise da coisa filmada por meio do “cine-olho”, o diretor de “Outubro” repetiu, ao longo de sua respeitada carreira, a intenção de instigar o público a se emocionar ou a raciocinar a partir da associação de imagens ou da metaforização dos fatos. Não por acaso, a tomada do poder é representada pela invasão dos aposentos da czarina, a vaidade de Kerensky é lembrada por um pavão ou o mesmo Kerensky tem seus atos retomados por um jogo de xadrez cujo principal peão é Napoleão. Percebe-se, no estilo de Eisenstein e, mais fortemente, nesta obra, uma preocupação com a atribuição de símbolos a ocorrências e a pessoas de vida pública.

Isso, em grande parte, se deve à já citada necessidade de se adequar o cine-arte ao entendimento popular, favorecendo-se, como em uma simples propaganda, uma perspectiva impactante (mas não muito) de algo que já pertença ao senso comum. Em vez de se filmar cifrões ou de se incluir uma legenda de “ruptura do capitalismo” na tela negra, o recurso de um cavalo preso a uma ponte por um frágil fio, evocando-se uma emoção quase catártica – ainda que sem apelos baratos.

É essa a mesma sensação que se tem diante da proposital contraposição entre imagens e som que protagoniza o filme. Como uma adaptação técnica da teoria dialética de Karl Marx, Eisenstein afinadamente utilizou seu único recurso sonoro, a orquestra, para forçar o público a uma ou outra interpretação de suas cenas. Não à toa, uma das principais críticas a sua linha de cinema é o caráter pretensioso – ou, para os exaltados, ditatorial – que ele aparece empregar, quando, no histórico desta arte, tiveram tão mais sucesso entre os ‘pensadores’ aquelas películas que deixavam espaços abertos para múltiplas opiniões.

Parece ainda escapar à doutrina mais hollywoodiana de lidar com o cinema e, mais propriamente, aos conhecedores mais recentes de Eisenstein, a compreensão, entretanto, de que este diretor jamais teve um objetivo diferente de uma condução de pensamento. Não por arbitrariedade, mas por perspectiva intelectual, ele sempre se preocupou com uma filmagem e com uma montagem que ao menos deixassem entrevistas suas percepções sobre os acontecimentos roteirizados. A participação dos novos estudiosos na análise da obra deste diretor, portanto, está ainda reservada a uma reprodução da cena das
velhinhas burguesas que atacavam os revoltosos com seus guarda-chuvas. Se tivessem outra atitude, entretanto, talvez tivessem contato mais qualitativo com uma das únicas verdadeiras riquezas que a era soviética deixou para o mundo: uma execução bastante particular da sétima arte.

[Por: Manoela Assayag e Tatiana Souza]



Fontes:
STAM, Robert. “Introdução à Teoria do Cinema”.
ALBERA, François. “Eisenstein e o construtivismo russo: a dramaturgia da forma em ‘Stuttgart’”


5 Comments:

Blogger Manoela said...

Pior que ainda deixamos de lado várias coisas. A técnica do Eisenstein é realmente surpreendente e exige muito mais do que um post.
Por exemplo: a cena das velhinhas atacando oficiais com seus guarda-chuvas é uma alusão ao "Germinal", de Émile Zola e, por conseguinte, uma tentativa do Eisenstein de remeter às Comunas de Paris.
Melhor do que a própria arte é a motivação por trás dela.

5:16 PM  
Blogger Camila Pontual said...

Adorei o post! Vcs conseguiram acabar com o tédio de Eisenstein. Deu vontade de ver o filme que apesar de interessante é tedioso.

12:33 AM  
Blogger Anna Carol said...

Como o professor às veze fala: quero muito ser igual a vocês duas quando crescer!! A análise das duas foi além do esperado (na minha opinião) para o blog e entrou no campo técnico, demonstrando, que além do gosto da Manu por cinema, que já me era conhecido, a Tatiana também entende da sétima arte.
Sinto-me completamente ignorante em relação a muitas das colocações do post, logo despreparada para comentá-las.
A questão que sempre entra nas nossas discussões é até que ponto a arte deve ser parcial. Eu sinceramente não tenho preferência, valorizo tanto a expressão livre de juízo de valor até a mais "ditatorial", pra usar a palavra do texto.

1:20 PM  
Blogger Manoela said...

Fico feliz com os comentários elogiosos em relação ao nosso post. Falar de cinema é sempre controverso, pois acaba parecendo um despejo de falsa erudição na maior parte das vezes...

Quanto à polêmica levantada pela Carolina e pela Francine, tendo a achar que não existe neutralidade em nada neste mundo e, portanto, até aquele mais comprometido com a parcialidade acaba deixando escapar traços personalistas. Pessoalmente, não acho o filme do Eisenstein tão conduzido quanto se diz - há diretores muito piores.

6:25 PM  
Blogger Maurício Santoro said...

Car@s,

belíssimo blog, parabéns a tod@s. Virei fã.

Abraços

12:10 PM  

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