Saturday, October 01, 2005

Bodas de Sangue: a Guerra Civil Espanhola e o fuzilamento de García Lorca.

Em 19 de agosto de 1936, a Falange de Francisco Franco prosseguia seu trabalho de perseguição à Frente Popular republicana. Aqueles não envolvidos nas conspirações e nas trocas de balas continuavam suas vidas, como ainda era possível naqueles primeiros meses de disputa entre legalistas e nacionalistas. Todos não viam (e talvez nem mesmo tentassem), entretanto, que aquele era o mais diferente dos dias normais de conflito. Ao Sul, escondida sob a cortina de chumbo, a Andaluzia soluçava o fuzilamento de seu mais fiel amante: o poeta e dramaturgo Federico García Lorca. Tempos antes das primeiras ações da Legião Condor (esquadrão de bombardeio e de combate financiado por Adolf Hitler) e da destruição de Guernica, a Guerra Civil Espanhola expunha sua intenção de extirpar da Espanha não apenas a integridade de seu governo eleito, mas também sua identidade e seu sentimento.

A vitimação de Lorca, no entanto, jamais foi uma coincidência política ou uma mera parte do conflito. Essencialmente apolítico, o escritor de Fuentevaqueros tinha como única contribuição para os republicanos a assinatura de obras para o grupo teatral de esquerda "La Barraca", ainda no início dos anos 1930. O perigo potencial que ele representava às aspirações moralizantes da Falange ultracatólica de Franco, no entanto, não passava despercebido a qualquer leitor atento de sua poesia, em especial o "Llanto por Ignacio Sanchez Mejías" (em homenagem ao grande toureiro e amigo, morto na arena) e a "Ode a Salvador Dalí" (expressão de um amor exacerbado pelo pintor e também amigo). Lorca era notoriamente um nome que tentava reformar uma Espanha ainda castelista e tradicional, e, além de dar voz a elementos não ouvidos anteriormente (como os ciganos da Andaluzia), insistia em se associar aos malvistos surrealistas e em manter relacionamentos homossexuais. Além disso, dedicara, ainda na década de 1920, à Guarda Civil, instituição militar tradicional espanhola, um raivoso poema, "Romance de la Guardia Civil Española", em que reavaliava o efeito que o chumbo e as cartucheiras dos "cavaleiros da morte" gerava na vida dos cidadãos marginais. Federico García Lorca, portanto, era um elemento alógeno ao tipo de regime que a extrema direita gostaria de implementar, e, muito por isso, acabou por transformado no mártir político que, fundamentalmente, jamais fora.

Ao contrário do que talvez previssem seus assassinos, todavia – apesar de, segundo alguns, o General Franco ter apreendido logo de início o real significado –, a interrupção da vida e da carreira de García Lorca foi capaz apenas de intensificar a admiração que ele gerava nos revolucionários e de acelerar sua transformação no autor de maior destaque da história da Espanha do século XX. A este respeito, percebem-se o esforço de publicação póstuma de "Poemas de Nueva York" (coletânea de poemas e de impressões coletados à época dos estudos de Lorca em Columbia), em 1940, e a emergência de diversos comentários e alusões a sua obra. O poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, documentou sua admiração em "A Federico García Lorca". O diretor Pedro Almodóvar, um expoente da nova contracultura espanhola surgida com o fim da ditadura franquista, por sua vez, remeteu brevemente ao modernismo e à contestação que ele herdou de Lorca, ao colocar uma recriação do "La Barraca" como um dos panos de fundo da "Mala Educación" de seu próprio Ignacio. Dado o reconhecimento que Lorca permanece tendo, quase 70 anos desde sua morte, parecem fazer sentido, mais do que nunca, os célebres versos de seu "Memento", de 1921: "Quando eu morrer, com minha guitarra enterrai-me, sob a areia/Quando eu morrer, enterrai-me num cata-vento. Quando eu morrer!" Sua obra, de tão viva, passa a impressão de jamais ter sido abafada.


Romance de la Guardia Civil Española

Los caballos negros son.
Las herraduras son negras.
Sobre las capas relucen
manchas de tinta y de cera.
Tienen, por eso no lloran,
de plomo las calaveras.
Con el alma de charol
vienen por la carretera.
Jorobados y nocturnos,
por donde animan ordenan
silencios de goma oscura
y miedos de fina arena.
Pasan, si quieren pasar,
y ocultan en la cabeza
una vaga astronomía
de pistolas inconcretas.

¡Oh ciudad de los gitanos!
En las esquinas, banderas.
La luna y la calabaza
con las guindas se conserva.
¡Oh ciudad de los gitanos!
Ciudad de dolor y almizcle,
con las torres de canela.

Cuando llegaba la noche,
noche que noche nochera,
los gitanos en sus fraguas
forjaban soles y flechas.
Un caballo malherido
llamaba a todas las puertas.
Gallos de vidrio cantaban
por Jerez de la Frontera.
El viento, vuelve desnudo
la esquina de la sorpresa,
en la noche platinoche,
noche, que noche nochera.

La Virgen y San José
perdieron sus castañuelas,
y buscan a los gitanos
para ver si las encuentran.
La Virgen viene vestida
con un traje de alcaldesa,
de papel de chocolate
con los collares de almendras.
San José mueve los brazos
bajo una capa de seda.
Detrás va Pedro Domecq
con tres sultanes de Persia.
La media luna soñaba
un éxtasis de cigüeña.
Estandartes y faroles
invaden las azoteas.
Por los espejos sollozan
bailarinas sin caderas.
Agua y sombra, sombra y agua
por Jerez de la Frontera.

¡Oh ciudad de los gitanos!
En las esquinas, banderas.
Apaga tus verdes luces
que viene la benemérita
¡Oh ciudad de los gitanos!
¿Quién te vio y no te recuerda?
Dejadla lejos del mar,
sin peines para sus crenchas.

Avanzan de dos en fondo
a la ciudad de la fiesta.
Un rumor de siemprevivas
invade las cartucheras.
Avanzan de dos en fondo.
Doble nocturno de tela.
El cielo se les antoja
una vitrina de espuelas.

La ciudad, libre de miedo,
multiplicaba sus puertas.
Cuarenta guardias civiles
entraron a saco por ellas.
Los relojes se pararon,
y el coñac de las botellas
se disfrazó de noviembre
para no infundir sospechas.
Un vuelo de gritos largos
se levantó en las veletas.
Los sables cortan las brisas
que los cascos atropellan.
Por las calles de penumbra
huyen las gitanas viejas
con los caballos dormidos
ylas orzas de moneda.
Por las calles empinadas
suben las capas siniestras,
dejando detrás fugaces
remolinos de tijeras.

En el portal de Belén
los gitanos se congregan.
San José, lleno de heridas,
amortaja a una doncella.
Tercos fusiles agudos
por toda la noche suenan.
La Virgen cura a los niños
con salivilla de estrella.
Pero la guardia civil
avanza sembrando hogueras,
donde joven y desnuda
la imaginación se quema.
Rosa la de los Camborios
gime sentada en su puerta
con sus dos pechos cortados
puestos en una bandeja.
Y otras muchachas corrían
perseguidas por sus trenzas;
en un aire donde estallan
rosas de pólvora negra.
Cuando todos los tejados
eran surcos en la tierra,
el alba meció sus hombros
en largo perfil de piedra.

¡Oh ciudad de los gitanos!
La guardia civil se aleja
por un túnel de silencio
mientras las llamas te cercan.

¡Oh ciudad de los gitanos!
¿Quién te vio y no te recuerda?
Que te busquen en mi frente.
Juego de luna y arena.

6 Comments:

Blogger Manoela said...

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1:23 PM  
Blogger Manoela said...

Não coube no post, mas queria deixar uma curiosidade por aqui. Jorge Luís Borges, ao conhecer García Lorca, considerou o poeta espanhol muito "performático" e "extravagante". Muito por conta disso, acabou avaliando, em sua revisão da obra de Lorca, que todo o trabalho deste na valorização dos grupos marginais era não mais do que um quase populismo.

Será apenas uma implicância conservadora de Borges ou a acusação procede?

1:24 PM  
Blogger Manoela said...

Esta coisa de Hemingway ir à Guerra me lembra a ida do Lord Byron à Grécia, lutar pela independência helênica.

Li algumas coisas sobre a vida do Hemingway para falar do Lorca (pensei em citá-lo no início do post) e dizem que a experiência da Guerra Civil Espanhola consolidou a sua sensação de solidão e de vazio diante do mundo.

1:03 PM  
Blogger Debs said...

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11:30 PM  
Blogger Debs said...

Nunca li nada do Lorca, não sei nada do Lorca, não tenho nada contra o Lorca... NÃO é uma ótima palavra pra definir minha relação com Lorca afinal. NÃO sabia nada dele até ler o post. (Manú, favor não me considerar a pior das ignorantes. Assim que você conseguir ler 1984 todo eu penso em ler algo interessante do Lorca).

Lorca é pra mim apenas uma boa impressão. Alguém que morreu por nada, por causa de uma guerra sem sentido (É Daniel, estou expressando juízo de valor sim!! O blog é democrático, lembra? Pra mim, guerra é quase sempre inútil!). Ser apolítico às vezes é mais ameaçador ao Estado do que estar engajado na luta da oposição.

O alcoolismo como fuga das pressões político-sociais não é novidade (se esse não fosse um blog sério eu até faria um comentáriozinho sobre uma certa foto de um certo alguém em um certo bar), mas como eu não sei nada de Lorca não sei se ele bebia... Pelos comentários da Tatiana parece que sim. Entre artistas alcoólatras e alcoólatras artísticos fico com a primeira opção, toda a tensão gerada pela guerra... Como jovens que nunca foram tocados pelo conflito armado, talvez jamais compreendamos o alento que um copo pode representar. Álcool, arte de qualidade e participação política andam muito próximos uns dos outros.

PS: Gírias e expressões marcadas pela oralidade fazem parte do discruso como forma de caracterização mais contumaz da minha opinião. Previsões da reação de alguns dos leitores podem ou não corresponder à realidade, mas servem para descontrair.

12:02 AM  
Blogger Pedro Villardi said...

Manu, depois de trocentos mil anos, cá estou. Promessa é dívida.
Seu post me lembrou uma série de quatro volumes de Max Gallo "Os Patriotas- Um romance histórico da resistência francesa", quando no volume I, o protagonista, Bertrand Renaud de Thorenc, um jornalista vai cobrir a guerra civil espanhola e se espanta, primeiro com "cadáveres estendidos nas arenas" e depois com o fato de "que todos tivessem cabelos pretos encarapinhados, mas, quando se aproximou, viu que as cabeças dos mortos estavam cobertas de crostas movediças, enxames de vorazes moscas negras que escondiam o grisalho, o castanho e o branco dos cabelos dos combatentes, na maioria fuzilados depois de se renderem."
Muito bom post, Manu. Mais uma vez, desculpem a "intromissão".

5:11 PM  

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