Tuesday, December 06, 2005

A América Latina de Gabriel García Márquez


Essa era a minha vida em 1932, quando foi anunciado que as tropas do Peru, que vivia debaixo do regime militar do general Luis Miguel Sánchez Cerro, tinham tomado o desguarnecido povoado de Letícia, nas margens do rio Amazonas, no extremo sul da Colômbia. A notícia retumbou no país inteiro. O governo decretou a mobilização nacional e organizou uma coleta pública para recolher de casa em casa as jóias familiares de maior valor. O patriotismo exacerbado pelo ataque arteiro das tropas peruanas provocou uma resposta popular sem precedentes. Os arrecadadores não descansavam um segundo, recolhendo de casa em casa as doações voluntárias, sobretudo as alianças de casamento, tão estimadas pelo seu preço real e por seu valor simbólico.”
(Viver para Contar)

“Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos.”
(Cem anos de Solidão)



Fazendo o quase impossível, transformando o uso intenso de adjetivos em instrumento respeitado na Literatura, Gabriel García Márquez construiu uma obra extensa sobre uma América Latina que parece existir apenas em seus livros. Como sua avó, Tranqüilina Iguarán, ou como sua personagem mais célebre, Úrsula Iguarán, ele parece tatear no escuro e recriar, com os olhos que apenas a cegueira pode oferecer, um cenário mágico e colorido por trás de cada desalento. Celebrando-se esta profusão de perfumes e de impressões próprios da terra, cada pequena história tem seu lugar, cada personagem simples tem sua emoção. Uma prostituta é sempre mais do que uma vendedora de sexo, o alquimista está distante de ser um lunático, a lavadeira pode ter uma importância fundamental.

Neste sentido, a obra de García Márquez não apresenta quaisquer preconceitos. A cultura guajira é elevada a um caráter pleno, sendo o autor um orgulhoso costeño (leia-se: originário da costa caribenha da Colômbia e, por isto, normalmente mestiço de índio). Os homens (e as mulheres) estão para todos os gostos: messiânicos, incansáveis, castos, belos, excêntricos, animalescos. As guerras civis, entre liberais e conservadores, jamais têm resultados definitivos. Um liberal verdadeiro é conservador, um conservador verdadeiro é liberal; e, nesta ciranda, Gabito reparte seus homens entre ambos os partidos, à moda do que ocorria de fato em suas famílias paterna e materna.

É esta semelhança do que coloca em seus livros com a sua própria história justamente a característica capaz de tornar Gabriel García Márquez um escritor com cuja arte podemos nos identificar. A despeito de nossas origens, e da distância em que estejamos da sua Colômbia janela para o mundo, é possível enxergarmos um traço das nossas crenças ou das crenças dos nossos em cada José Arcadio Buendía, em cada Remedios, em cada Fermina Daza. Trata-se, como o próprio Gabo insiste em contar, da maior influência sobre ele realizada daquele que foi o autor de sua juventude pobre entre Baranquillas, Sucre e Bogotá: William Faulkner. É preciso falar sobre aquilo que está perto, pois apenas aquilo que é íntimo ou próximo traz autoridade para a transposição em palavras. Assim, mesmo que prevaleça a criatividade de García Márquez em criar um quê de fantástico para todas as personagens, as fontes de inspiração são sempre uma família e um grupo de amigos inacreditável, extraordinário (até mesmo o chefe de Estado e de governo cubano Fidel Castro), que talvez só fosse possível em meio à miscigenação latino-americana.

Nenhum livro de Gabito, portanto, apesar dos projetos de aparente simplicidade, confirma-se nesta crueza. Se em “O amor nos tempos do cólera” há o protagonismo de um amor dito impossível, coloca-se uma espera de cinqüenta e um anos, nove meses e quatro dias para, em seguida, relativizá-la, e torná-la tão banal quanto o correr de algumas horas. Há um homem comprando um espelho apenas porque nele se refletiu, por alguns segundos, a imagem da mulher amada (e inalcançável). Há uma resistência ímpar à renúncia, e há mais uma fêmea forte, aceitando um casamento de convenções com uma ternura quase apaixonada. Já em “Cem anos de solidão”, é preciso ver a evolução (ou involução) de cem anos em uma aldeia perdida no Caribe. Neste meio tempo, uma família quase amaldiçoada, em que se repetem os nomes a todo o tempo, sofre os efeitos de todas as transformações possíveis em um século numa área periférica. Há as companhias de bananas, há as estradas de ferro, há os americanos curtindo a vida, há os amantes extirpando a vida, há os milagres, há os peixinhos de ouro, há riqueza na pobreza – e pobreza na riqueza, complicando a descrição. A diversidade parece ser, então, em último aspecto, a síntese do trabalho que Gabriel García Márquez vem exercendo desde quando era garoto e escrevia apenas histórias em quadrinhos. Uma profusão legítima da terra, designada a terminar somente sob os poderes do vento – tal e qual uma profecia de Melquíades.


Fontes:
MÁRQUEZ, Gabriel García. "Cem anos de Solidão".
MÁRQUEZ, Gabriel García. "O amor nos tempos do cólera".
MÁRQUEZ, Gabriel García. "Viver para contar".

A imagem que ilustra este post é da cidade colombiana de Aracataca, cidade-natal de García Márquez, e foi retirada deste site.

4 Comments:

Blogger Manoela said...

Pelo visto, coube a mim a função de encerrar a existência deste blog como um projeto acadêmico.

Não sei até que ponto este ficou bom, visto que bastante atrapalhado por uma crise de alergia quase incontrolável.

As referências falam por elas mesmas, e não deixo de recomendar (mais uma vez) a leitura de "O amor nos tempos do cólera". Até terminar de escrever, não tinha certeza que faria referência ao livro, mas teria sido uma pena se tivesse sido diferente. A espera de Florentino Ariza por Fermina Daza é uma das mais incríveis surpresas que a Literatura me causou.

Este post poderia ter sido sobre Manuel Puig, Mario Vargas Llosa, Jorge Luís Borges ou Pablo Neruda, mas acho que agora entendo por que João Daniel preferiu García Márquez, certo?

Boas férias para todos nós, e mantenhamos isto aqui ativo. Um pouco mais de cultura nunca fez mal a ninguém.

4:43 AM  
Blogger Manoela said...

Ah!

Este sem dedicatória, por impossibilidade (?) de se encontrar uma referência específica no tema do post.

Aos fãs de García Márquez, então.

5:09 AM  
Blogger Debs said...

Manuelita!

Fui descendo a barra de rolagem e, tão logo me deparei com o título do post, pensei que esse era mesmo um tema a ser trabalhado em estilo Manoeliano.

Me junto ao coro de quem tentou ler Cem Anos de Solidão e acabou condenando o livro ao exílio sugerido pelo nome. Depois da tentativa frustrada nunca mais toquei em livros do Gabito, apesar da insistência fanática de um pai que adoraria gastar uma tarde fagueira discutindo as percepções de latinidade do autor.

Não digo, contudo, que nunca o lerei. E muito menos que é ruim. Tampouco prometo que me arriscarei novamente naquela cidadezinha louca onde o Esquecimento resolveu construir sua tapera. Digo apenas que acho que era ainda muito criança para Gabriel García Márquez... Não sabia nada de nada aos 12 anos e meu gosto literário ainda estava na fase mitológica, viciada em Christian Jacq e suas aventuras arqueológicas.

A espera de Florentino sugere, entre muitíssimas outras coisas, que tudo tem um tempo certo. 1999 não era o ano certo para que eu encontrasse Márquez. Mas, as férias serão longas, talvez eu devesse retirar meu livrinho do exílio injusto e encará-lo de vez. Afinal concordo mesmo que um pouquinho de cultura nunca fez mal a ninguém.

7:31 PM  
Blogger Manoela said...

Ah! Daniel.

Mas a graça é essa, ler quando se está apaixonado. Quando eu li, não estava, e mesmo assim acho que quase fiquei só por ler. As 430 páginas correm rapidinho, é impossível largar o livro.

Quanto ao amor de Florentina por Fermina, não poderia ser diferente. Após uma espera tão grande, era natural que ele se apaixonasse pelo próprio platonismo - e conseguimos ver com clareza como algumas paixões são muito mais interessantes no plano das idéias.

Leiam, leiam e leiam. Se pode deixá-los um pouco deprimidos, não importa. Tenho certeza que agregará alguma coisa, e que se tornarão amantes melhores.

Ainda não li os contos, vou procurar.

E o blog não morrerá! Há sempre as mosqueteiras para deixá-lo no ar.

2:39 AM  

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