Monday, December 05, 2005

Teerã by Luz Celeste e Alá

(O post que você lerá a seguir se trata de uma conversa extra-oficial entre Marjane Satrapi e Deus. Marjane e Deus eram grandes amigos quando ela era uma menininha, mas nada foi igual desde que ele falhou em garantir que a pequena Marji reencontrasse seu amigo Kaveh. Ainda bem que sempre é tempo de mudar as coisas!)

Marjane – Eu sei que você está aí. Eu queria conversar...


Deus – Conversar?! Eu estou sempre aqui, mas já faz muito tempo que você não fala comigo. Estragou os nossos planos de transformá-la na última profeta!

Marjane – É... Muita coisa aconteceu desde então... Acho que cresci e achei que escrever histórias em quadrinhos era mais divertido.

Deus – Humpf, Maomé gostava muito de ser profeta! Você não sabe o que está perdendo.

Marjane – Não é sobre essa história de profeta que eu queria falar. É sobre o que aconteceu em Teerã no dia 4 de novembro de 1979. Lembra?

Deus – E como poderia esquecer? Nunca tive tantos requerimentos de diplomatas me pedindo que os levasse de volta para suas famílias! E você brigou comigo por causa do seu amigo Kaveh... Os seus conterrâneos estavam mesmo enlouquecidos na luta contra o imperialismo norte americano...

Marjane – Eu fiquei muito chateada quando descobri que, sem a Embaixada, não poderia tirar um visto de turismo pra visitar o Kaveh nos Estados Unidos, acho que descontei a frustração em você...

Deus – Eu tive muito trabalho para atender os pedidos dos diplomatas americanos. Os estudantes fundamentalistas estavam irredutíveis! E o aiatolá Khomeini não ajudou muito conclamando o povo a se livrar do “ninho de serpentes” que se escondia em Teerã.

Marjane – Eles estavam mesmo fora de controle... Lembro-me das manifestações a favor da invasão da Embaixada. Alguns dias depois houve tentativas de fazer o mesmo no Paquistão e na Arábia Saudita.

Deus – Os fundamentalistas estavam irredutíveis! Queriam o Xá Reza Pahlevi de qualquer jeito e, mesmo depois de sua morte, ainda insistiam nesse cabo-de-guerra sem sentido...

Marjane – No final eles aceitaram devolver as pessoas em troca do descongelamento dos bens iranianos nos EUA.

Deus – Dessa toca sai mais coelho, mas é melhor deixar por isso mesmo. Os bens estavam congelados desde o início e realmente foram devolvidos, mas as relações diplomáticas estão rompidas desde então.

Marjane – Assisti na televisão a comemoração dos 26 anos da tomada da Embaixada. O tempo passa rápido, mas idéias custam a passar. O Aiatolá Ali Khamenei fez até discurso!

Deus – 26 anos? Já?! Parece que foi ontem que eu estava conversando com você sentado na beira da cama. Para os reféns o tempo não passa tão rápido assim. Foram 444 dias desde que a Embaixada dos Estados Unidos foi tomada no Irã até o dia da libertação dos prisioneiros.

Marjane – 444 dias... Parece que você não gostava muito dos reféns (risada).

Deus – Não brinque com uma coisa dessas, Marji! Você sabe o que é ter que coordenar tudo ao mesmo tempo? Os americanos entraram com um processo na Corte Internacional de Justiça pra tentar resolver pelas vias convencionais. Eu esperei pra ver no que dava... Deu em uma operação secreta de resgate que falhou redondamente. E acabou que, ao invés de ir pros Estados Unidos, você foi pra Viena. Uma boa troca, não acha? Só estou curioso pra saber o que fez você me chamar... Esse momento tipo “recordar é viver” me parece esquisito...

Marjane – (risada) Realmente. Mas quando vi as imagens das comemorações em Teerã achei que o Irã não havia mudado nada desde que eu o deixei. E, ouvindo os discursos políticos onde seu nome é sempre citado, lembrei de quando eu queria ser profeta ...

Deus – Marji! Eu te disse que VOCÊ É a minha última profeta! A Luz Celestial! Você bem que tentou fugir, mas consegui dar um jeito de passar a mensagem adiante.

Marjane - ??? Está falando de meus livros? Mas eles são minha biografia, são sobre o Irã e tudo o mais, mas em algumas páginas eu até sou bastante ácida em relação à religião! Jeito estranho de ser profeta esse que você inventou pra mim...

Deus – (risada) Você mesma acabou de dizer que acha que nada mudou desde que foi embora, desde que a Embaixada foi tomada, desde que os reféns foram libertos. Mas hoje muita gente sabe um pouco mais sobre o Irã por causa dos seus livros! Talvez até mesmo os iranianos tenham uma perspectiva mais ou menos diferente. E alguns conseguiram até aprender um pouco mais sobre mim!

Marjane – Sobre como você gosta de conversar? (risada)

Deus – Não, sobre como eu me pareço com Marx, dããã!! Francamente Marji! Mas e aí? Estamos mesmo de bem? Ou você vai esperar mais 26 anos pra conversarmos de novo?

Marjane – (risadas) Estamos de bem. Mas você ainda me deve uma visita ao Kaveh! A gente se vê por aí!

Deus – Valeu Marji! E pode dormir tranqüila, um dia as coisas mudam, mas essa já é outra história.

3 Comments:

Blogger Manoela said...

Este período não poderia terminar sem uma licença poética da Deborah.

: )

5:15 AM  
Blogger Manoela said...

E parece que as aulas de Direito nas Relações Internacionais serviram a algo mais do que ao sono para alguém. Très bien.

5:17 AM  
Blogger Debs said...

Sei que é meio óbvio, mas faltou colocar no fim do post:

Quase tudo no diálogo acima é uma obra de ficção. A parte sobre o caso Irã x EUA é verídico, mas o diálogo é invencionice da minha cabeça mesmo. Qualquer semelhança com a realidade é mero acidente. :)

11:08 PM  

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