Sunday, December 04, 2005

Brilho eterno de um livro de lembranças



“Nossa memória é frágil. Uma vida é
um tempo muito breve. Tudo acontece tão rápido que não dá tempo de entender a
relação entre os acontecimentos.”

Baseado na obra homônima de Isabel Allende, o filme “A Casa dos Espíritos” olha para o Chile como que através de uma vitrine iluminada. Em meio à profusão de cores, cheiros e elementos fantásticos, a tomada de poder dos militares serve de fundo à verdadeira trama de superação e amadurecimento dos personagens. Carregada de mistério e dotada de poderes sobrenaturais, a protagonista é Clara. Um nome bem escolhido para quem representa o ideal de equidade, justiça, democracia e respeito às diferenças. Clara não é comunista, mas também não é liberal. Não vive numa dimensão utópica, e nem poderia, pois é a própria utopia encarnada. Ela vive na fronteira entre os mundos, num lugar onde a lógica e a física nem sempre fazem sentido, porque ele é regido por suas próprias leis.

É Clara quem tenta transmitir a mensagem de mudança para Esteban: seu marido, liberal, conservador, aristocrático e anticomunista até o último fio de cabelo. Unida por um laço de amor ela tem em Esteban uma âncora que a liga à Terra e se contrapõe ao elemento mágico que sempre a rodeou. Da insólita união nasce a pequena Branca. Luz da vida do casal, ela cresce sob a influência envolvente da mãe e os pulsos de ferro do pai que a venera.

Quando seu amado tesouro se envolve com o colono e revolucionário Pedro, Esteban atira todo seu veneno burguês e mesquinho no rosto da única que sempre o amou e entendeu apesar de todos os defeitos: a esposa. Por todos esses anos ela tentou alertá-lo para a inevitabilidade das mudanças, se dedicando aos pobres e tratando a todos com gentileza, mas ele não estava pronto para a verdade. Ferida, Clara decide se calar. Talvez motivada por orgulho, diriam alguns, ou por medo paralisante diriam outros, mas tenho para mim que Esteban nunca a havia escutado realmente. O silêncio da utopia apenas torna mais óbvia a distância que separava o casal. Há amor, mas Esteban está completamente cego para o mundo dos espíritos no qual Clara vive imersa.

O romance juvenil que serve de estopim para o rompimento tem também uma conseqüência radiante: Alba. Em sua certidão de nascimento a promessa de um novo dia que vem. Alva, alvorecer, amanhecer, aurora. O prenúncio de um novo tempo que precisará enfrentar diversas dores até estar pronta. Alba cresce sem o pai, porque este estava ocupado demais fugindo dos atentados do Partido Liberal de seu avô e espalhando os ideais socialistas pelo Chile. Mas aprende com a mãe e com a avó o significado da esperança, da luta e da espera paciente.

Em 1973 a utopia morre. Os militares estavam a caminho e isso era mais do que Clara poderia suportar. Deixa seus diários aos cuidados da netinha para que sirvam de guia a sua filha querida e parte para junto dos espíritos que tanto a ajudaram. Allende é deposto. Pedro é perseguido pelo regime ditatorial que é instaurado e o nome de Branca é encontrado. Não há nada que Esteban possa fazer, a verdade finalmente se revela nua, sem os trapos direitistas que ele tanto venerava. Sua filha adorada é levada pelos milicos para um martírio sem fim. Mas, mesmo na mais completa agonia, ainda se mantém fiel ao amor da sua vida. Ela é filha da luz e, mesmo quando vendada, mantém a cabeça erguida em direção a seus algozes. Em algum lugar fora dos muros da prisão existe uma pequena aurora a sua espera que não pode raiar sozinha e, ao seu lado, a utopia que crê num futuro de esperança.

Clara, Branca, Alba. Um caminho de iluminação e crescimento. Arautos reluzentes num Chile que em breve mergulharia na escuridão com cheiro de sangue. Isabel Allende equilibra sonho e política, amor e ódio, sublimação e dor, liberalismo e comunismo, campo e cidade, luz e escuridão. Contraposições súbitas e incompreensíveis em sua velocidade.Talvez por isso a autora tenha escrito o livro, para, assim como Clara fez com suas descendentes, deixar um registro fixo no tempo para permitir a análise dos acontecimentos em sua verdadeira dimensão.

1 Comments:

Blogger Manoela said...

Vamos lá.

Realmente, foi bom que Deborah e Fernandinha tenham postado, pois as visões de ambas foram bem diferentes. As duas conseguiram levar o filme para muito além do que ele é (fraco, fraco, fraco). Fernandinha, com a contextualização histórica. Deborah, com sua mania de poesia - que eu compreendo e admiro, mas que me faz temer que ela seja outra a acabar caindo na crença do curso errado.

Não sei mais o que possa falar. Detesto quando não consigo fazer uma discussão, mas são 05h22 da manhã, estou com uma alergia insuportável e, confesso, tenho achado o Chile um grande clichê. Não me odeiem! :P

5:22 AM  

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