Sunday, October 02, 2005

“Você deve se tornar Caligari”

O Gabinete do Dr. Caligari é o primeiro filme do expressionismo alemão e uma das manifestações artísticas mais celebrada da República de Weimar. Depois de uma ampla campanha publicitária, que acabou com o enigmático cartaz “Você deve se tornar Caligari”, foi lançado em fevereiro de 1920 em Berlim. Cineastas e historiadores defendem que o filme, com sua atmosfera obscura e seu enredo de horror, exemplifica o espírito de Weimar.

A história se passa em uma fictícia cidade alemã, onde chega um parque de diversões que tem como uma de suas atrações o Dr. Caligari e seu sonâmbulo Cesare. Para conseguir licença para o show, Caligari vai à prefeitura, onde é tratado com arrogância por um funcionário, que é encontrado morto no dia seguinte. Os estudantes Francis e Alan assistem a exibição de Caligari, que diz a platéia que Cesare pode prever o futuro. Alan então pergunta por quanto tempo irá viver. “Até o amanhecer” responde Cesare. De fato, o estudante é assassinado, da mesma maneira que o funcionário da prefeitura. Francis então passa a suspeitar de Caligari e vai até o seu trailer, onde vê o que parece ser Cesare adormecido em uma caixa. Porém, o sonâmbulo se encontrava na casa de Jane, namorada de Francis, tentando raptá-la. A polícia descobre que existia um boneco na caixa vista por Francis e torna-se óbvio que Cesare cometia os crimes segundo ordens de seu mestre, que despista a polícia e se refugia em um asilo de loucos. Francis e a polícia descobrem que o hipnotista é o diretor do manicômio e, ao examinarem suas anotações, encontram referências a um saltimbanco chamado Dr. Caligari, que havia induzido seu médium a cometer crimes. Os registros clínicos do diretor comprovam que ele estava fazendo o mesmo com um de seus pacientes. Quando Francis tenta obter uma confissão do ocorrido, o diretor descontrola-se e só é contido após ser colocado em uma camisa de força.

Assim, Hans Janowitz e Carl Mayer, autores de O Gabinete do Dr. Caligari, fazem um filme contra a obediência militar. O personagem Caligari personifica uma autoridade ilimitada que idolatra o poder e que, na busca obsessiva pelo mesmo, se revela brutal e insana, violando direitos e valores humanos. Cesare, por sua vez, representa os homens que são treinados para matar e morrer sob a pressão do serviço militar obrigatório.

Contudo, o filme não foi exibido dessa maneira. Ao aceitar dirigi-lo, Robert Wiene modificou a história original, tornando os assassinatos cometidos pelo diretor do manicômio em um delírio da mente de Francis, um dos loucos lá internados. “Um filme revolucionário foi assim transformado em um filme conformista”*. Ao contrário da original, a versão modificada valoriza a autoridade e condena seus opositores a loucura.

Questiona-se,entretanto, se a idéia original seria facilmente compreendida pelo grande público. A única alternativa proposta à tirania seria a anarquia, representada pela atividade desordenada do parque de diversões. A falha na mensagem revolucionária está na incapacidade dos autores de imaginar os contornos de uma tão sonhada liberdade, o que fica evidente na escolha do parque para representá-la. Por outro lado, o parque reflete a situação caótica da Alemanha no pós-guerra: um país arruinado e devastado pela guerra e imerso em intensa agitação política, o que se evidencia pela proclamação da República na Baviera, um decreto anunciando a abdicação do kaiser (que foge para a Holanda), manifestações de grupos conservadores contrários à República e divergências internas entre os socialistas. O Partido Social- Democrata era majoritário, mas a postura de discursar como revolucionário e agir como parlamentarista provocou conflitos internos e a formação do Partido Social-Democrata Independente pelos membros dissidentes. A eles se uniram revolucionários marxistas mais radicais, os Espartacistas.

A versão de Weine também é mais consistente com a atitude da maioria do povo alemão após a guerra, que tendia a se distanciar do mundo externo e mergulhar em seus conflitos interiores. Sendo fruto da imaginação de um louco, a derrota de Caligari passa a ser uma experiência psicológica e assim o filme sugere que, ao se voltarem para si mesmos, os alemães são impulsionados a reconsiderar sua crença na autoridade. Esse comportamento foi adotado pela maioria dos social-democratas, que se afastaram das ações revolucionárias. A aliança feita, no primeiro ano de Weimar, pelo grupo que subiu ao poder na Alemanha com o general Groener é um exemplo disso. O exército foi posto à disposição da República em troca da manutenção da ordem e da disciplina do mesmo, estando esse disposto a lutar contra o Bolchevismo e esperando que o governo quisesse o mesmo. Apesar de Groener ser considerado moderado, o acordo abriu uma porta para a entrada do exército no poder e criou oportunidades para tipos mais radicais do que Groener. Os militares foram aos poucos ressurgindo como um fator político. “ O filme reflete este duplo aspecto da vida alemã, ao acoplar uma realidade na qual a autoridade de Caligari triunfa, a uma alucinação em que essa mesma autoridade é derrubada.”*

Ambas as versões refletem o pensamento confuso dos expressionistas e sua frustração com a realidade. “Intencionalmente ou não, Caligari expõe a alma se movimentando entre a tirania e o caos, e enfrentando uma situação desesperada: qualquer fuga da tirania parece jogá-lo num estado de confusão absoluta”. *


*Citações:
Kracauer, Siegfried. “De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão” (1947) 78-92

2 Comments:

Blogger Manoela said...

Paula,

Já tinha gostado muito da parte cultural do seu texto ao ouvir sua prova escrita (estranha esta construção), mas gostei ainda mais do seu post.

Coloco o ponto do vazio do povo alemão em relação, novamente, à Sagração da Primavera (vai acabar parecendo que eu só li este texto na vida; mania feia de citações). É interessante como o trauma da guerra levou a França e a Inglaterra a um estado de medo e de cegueira; ao passo que, na Alemanha, o mesmo desespero, acrescido, é claro, da dor da derrota - mas não sei afirmar se, substancialmente, vencer fez tanta diferença -, movimentou a vida cultural e encaminhou os indivíduos a um estágio de quase submissão absoluta à autoridade.

8:55 PM  
Blogger Debs said...

Eu não assisti o filme :(
Mas me parece que Cesare gostaria muito de conhecer o Vampiro de Dusseldorf. No discurso de confissão de Becker ele culpa uma "voz interior", que o domina, pelos crimes cometidos.

"Mas eu? Poderia ter sido outra coisa? Sabem da maldição que há dentro de mim? Já ouviram esta voz? Conhecem minha tortura?
Corro, corro ao longo de ruas sem fim... Quero fugir, fugir..."


Quem sabe o Dr. Caligari não andou hipnotizando ele também. Não lhes sobrou escolha, assim como não sobrava nenhuma aos alemães. Em meio ao caos do pós-guerra, enlouquecer não é tão ruim assim. Pode-se até fazer uma tese que encare o apoio popular ao nazismo como um caso sem precedentes de loucura coletiva.

Foram todos se tratar no consultório do Dr. Caligari... Uma explicação bastante poética para o holocausto.

11:02 PM  

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