Saturday, October 15, 2005

"O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada"


Fofo. O famoso Pato Donald, símbolo do average american cantando “Os quindins de Iaiá”, música de Ary Barroso, em português é encantador. Com certeza as crianças da década de 40 que assistiram The Three Caballeros (EUA-1945) deram boas risadas com Gauchito e seu burrinho voador e com Pablo, pingüim de sangue frio. O que os pequerruchos provavelmente ignoravam era que a película fora encomendada aos estúdios Disney, como parte de uma estratégia estadunidense muito bem definida que contava com a coordenação de uma agência do governo, a CIAA (Office of the Coordinator of Inter-American Affairs), comandada por Nelson Rockfeller, filho de célebre magnata do petróleo.

A criação de agências governamentais fazia parte da política de Franklin Delano Roosevelt, democrata eleito após doze anos de hegemonia republicana. A transição da política do Big Stick e suas variantes para a política da Boa Vizinhança, vista como bastante pertinente por especialistas até hoje, era vista como assunto de segurança nacional. Por isso mesmo, o órgão comandado pelo jovem herdeiro era subordinado ao Conselho de Defesa Nacional dos EUA, dada a importância estratégica da América Latina. É importante ressaltar, que embora agora o método fosse a conquista dos “corações e mentes” dos hermanos, os objetivos continuavam os mesmos: manter a liderança norte-americana, encorajar a estabilidade política do continente e minimizar outras influências na região. Segundo Lloyde Gardner, “a Política de Boa Vizinhança resultava em parte do reconhecimento de que os EUA deveriam agir com mais tática em suas relações com vizinhos mais fracos e em parte da percepção de que a intervenção militar na verdade atrapalhava o uso efetivo do poder político e econômico dos EUA”.

A ação da CIAA no Brasil, que concentrava seus esforços nas áreas de informação, saúde e alimentação, sempre em nome da “soliedariedade hemisférica”, passou, a partir do começo dos anos 40 a cooperar com o DIP, que buscava consolidar o regime ditatorial no Brasil. “A intenção de Disney e Rockfeller era oferecer um produto que combinasse entretenimento e valores educativos, ao mesmo tempo em que era veiculada uma imagem do Brasil favorável ao Estado Novo”. O governo brasileiro, que se deparava com opiniões contrárias quanto ao alinhamento aos EUA, acabou se aproveitando da situação e ganhando ajuda no seu projeto de industrialização. O filme em questão foi visto pelas autoridades como um retrato positivo do país. Voltemos a ele.

A aventura começa quando Donald é regalado com vários mimos de seus amigos da América Latina. Logo ao abrir o primeiro deles é informado de que tem mais parentes ao sul do Rio Grande do que há grãos de café no Brasil. São mostradas diversas aves de várias áreas sul-americanas, o que mostra que houve uma preocupação muito grande em apresentar corretamente a região. Noutro deles, é levado à Bahia pelo anfitrião recém criado por Walt Disney após uma viagem ao Rio de Janeiro patrocinada pela CIAA, Zé Carioca. O modo como a cidade de São Salvador é exibida demonstra novamente o interesse na precisão geográfica e arquitetônica. Apesar de todos os esforços, vários estereótipos são reforçados: a de que a vocação dos brasileiros é a diversão, sempre esperando uma oportunidade de parar de trabalhar para divertir-se e/ou à estrangeiros, como parte de sua natureza amigável; a sensualidade das latinas e sua afeição por gringos, o latin lover malandro, entre outros. Aliás, a disputa entre um americano “certinho” e um latino caliente por uma nativa é lugar comum em filmes da época. A ausência de negros não é em si um choque, pois o filme Voando para o Rio (Flyind Down to Rio-EUA-1933) foi o primeiro e único musical de Hollywood passado no Brasil a ter atores de ascendência africana no elenco. A visita ao México guiada por Panchito não é muito diferente; tipos semelhantes são apresentados. Uma curiosidade é que no passeio de sarape mágico aparecem carros circulando por estradas, para contrastar com as belezas naturais; o intercâmbio poderia apenas trazer benefícios (não importa o quão unilateral ele tenha sido na realidade). Em ambas as visitas, Donald é tão cativado pelas moças, que seu amigo Zé chega a dizer que ele é um fast worker em suas investidas, de acordo com a visão de que aquelas são terras onde a paixão predomina sobre a racionalidade.

Não, queridos colegas e demais freqüentadores do blog, não contarei o final da película. Não o faria nem se quisesse. Esta acaba de repente, como se aquela união entre o "cavaleiros" fosse um fim em si, o próprio final feliz de qualquer produção dos estúdios Disney que se preze. Também, com vizinhos encantadores como esses, que objetivos poderiam existir?!? Fofo.


#Citação tirada de: FREIRE-MEDEIROS, Bianca. O Rio de Janeiro que Hollywood Inventou. Rio de Janeiro, Jorge Zahar ed.., 2005

7 Comments:

Blogger Pedro Villardi said...

"Só boto bi-bop no meu samba/ Quando o tio sam pegar no tamborim."
Creio que esse sambinha da década de 1940 combina, senão ilustra bem o post da Anna.
Mais a fundo, mas não tanto, na cena política, porém sem esquecer dos aspectos culturais, o filme "For All, um trampolim para a vitória" retrata de forma descontraída a política da Boa Vizinhaça, sem esquecer a perocupação do Tio Sam com a influência ideológica sobre o continente americano.Na película, aparecem tanto o dilema da mocinha pelo "americano certinho" ou pelo "latino caliente"
como à caça aos que poderiam representar uma ameaça ao Estado Novo.
Muito bom o post, Anna.
Desculpem a "intromissão".

4:54 PM  
Blogger Manoela said...

A cultura de massa é realmente impressionante. Particularmente, acho curiosa (para não dizer absurda) a associação de Carmem Miranda ao Brasil. Posso estar enganada, no meu imperfeito conhecimento sobre as manifestações populares de nosso país na 1ª metade do século XX (alguma recomendação de livro a respeito?), mas não consigo ver nossa identidade em uma cantora PORTUGUESA dançando RUMBA (ritmo caribenho).

Não estou aqui assumindo a função habitual do brasileiro, de negar suas origens latino-americanas, tampouco criticando que os EUA aceitassem Carmem com a boa vontade que aceitarem: estou somente comentando quanto a "nossa representação no exterior" não era realmente nossa.

Será que somos o Zé Carioca? Será que somos a baiana vendendo acarajé? Será que somos o gaúcho dançando em volta da árvore da amizade? Quanto um estereótipo de fato limita a nossa expressão? (Cabendo aqui a lembrança de que os norte-americanos também não são um povo de brancos, protestantes e estúpidos; que os franceses não são uma nação de chatos xenófobos; que os chineses não têm necessariamente uma cultura violenta e negativa)

3:19 PM  
Blogger Manoela said...

ERRATA:

"...com a boa vontade que aceitarAm"

3:20 PM  
Blogger Manoela said...

Ah, claro! antes que alguém comente. Não haveria algo de ruim em sermos baianos vendendo acarajé ou gaúchos dançando: somente discordo de que devamos assumir de bom grado essas imagens planas.

3:22 PM  
Blogger Anna Carol said...

Daniel, se você estiver interessado em conhecer o trabalho de Nelson Rockfeller, recomendo o livro que li para fazer o post: O Tio Sam Chega ao Brasil. Dá pra ter idéia das diversas áreas em que OCAA atuava (que devido ao espaço só pude citar) e como isso servia aos seus interesses.
E Manu, no outro livro que li para fazer o post, O Rio de Janeiro que Hollywood Inventou, a autora comenta brevemente que na época já havia protestos no Brasil sobre a maneira como o país era apresentado. O que ela questiona é que se essa não era uma imagem que a arte da época muitas vezes mostrava também. Ela cita músicas como Aquarela do Brasil.
Na verdade, essa foi uma questão que sempre me intrigou. Como nós, brasileiros, nos vemos. Um fato que me chama atenção é que toda vez que um artista estrangeiro vem pra cá, uma das primeiras perguntas dos repórtes é: o que você está achando das mulheres brasileiras? Então penso até que ponto nós não incentivamos a nossa imagem de terra de mulheres sensuais, das fantasias, do futebol e de "moro num país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza".
Agora, sem dúvida que existem coisas que realmente doem, como quando chamam rumba de samba e coisas do gênero. Fazer o que, né?

9:31 PM  
Blogger Debs said...

This comment has been removed by a blog administrator.

12:00 AM  
Blogger Debs said...

Debater as variadas expressões de cultura nacional... Decidir entre baianas e cariocas, acarajé ou quindim... Não dá. É tudo Brasil, em sua confusa mistura de confusões.

Depois de assitir o filme e ficar chocada com a "branquelice" da baiana voltei as cenas até os pontos musicais. É mesmo um filme muito fofo! Afora, é claro, a mensagem política que arranha a superfície. Admito que não resisti ao embalo de Iaiá e arrisquei um sambinha com a minha mãe no meio da sala de estar, mas não é sobre essa canção que eu queria falar.

A que fez os meus sensores críticos apitarem foi a dos Caballeros... quem ouviu e não prestou atenção deveria tentar mais uma vez. Um pedacinho do refrão é assutador! E vem acompanhado de uma cena que mostra as 3 aves protagonistas cantando, lado a lado, com o Donald no meio:

"Oh! We have the stars to guide us!"

Essa história de estrelas guiando a América Latina é típica dos sobrinhos do Tio Sam! Aposto que a constelação do Cruzeiro do Sul está fora desse grupo seleto de esferas incandescentes! Essa não é a única demonstração do caráter político da película, mas me pareceu a mais óbvia.

Poderia também falar da cena em que eles comparam sua união com a dos livros em uma prateleira e adivinha só quem é o livro número 1! Donald Duck dispara na frente de seus primos penosos.

"Through fair or stormy weather
We stand close together
Like books on the shelf!"


Nessa prateleira eu preferia melhor companhia, mas, desde quando rodaram o filme até hoje, parece que o volume número 1 da América como um todo está escrito em inglês. Mais alguém aí acha que nosso povo muitas vezes se lê através de "livros/lentes" anglo- americanas? E acaba acreditando nos mitos de mulatas sacolejantes e matas verdejantes? E a versão em espanhol? Será que conta uma história melhor?

Adios my friends! Espero suas answers muy em breve, de preferência em portuguese! Hasta luego!

12:10 AM  

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