Thursday, October 27, 2005

UMA DAS HISTÓRIAS DO HOLOCAUSTO - RESENHA DO LIVRO "O DIÁRIO DE ANNE FRANK"

“Espero poder contar tudo a você, como nunca pude contar a ninguém, e espero que você seja uma grande fonte de conforto e ajuda” -AMSTERDÃ, 12 DE JUNHO DE 1942.

Em seu aniversário de 13 anos, Anneliese Marie Frank ganha um diário. Como qualquer adolescente, Anne lida com questões existenciais e de natureza muito pessoal, sendo o diário ideal para expressar livremente o que pensa. Talvez por isso possa parecer controverso que um documento tão especifico tenha tamanha importância. Porém, uma análise menos superficial demonstra que a riqueza do manuscrito reside exatamente em sua particularidade, sendo um riquíssimo retrato do holocausto sob ângulos pouco explorados.

A parte inicial do diário relata um pouco da vida de Anne, um mês antes de sua família se esconder no “Anexo Secreto”. Mesmo em situações simples é visível o peso do momento histórico afetando diretamente a vida de pessoas comuns. Pessoas comuns com apenas uma peculiaridade: eram judeus. Ao contrário do que muitos pensam, as condições desumanas não se restringiam aos campos de concentração, uma vez que o cotidiano também era crescentemente sufocado por uma série de decretos anti-semitas. De acordo com Anne, “Você não podia fazer nem isso nem aquilo, mas a vida continuava. Jacque sempre me dizia: ‘Eu não ouso fazer mais nada, porque tenho medo de que não seja permitido’”.

Quando Margot, sua irmã, recebe uma notificação da SS, os Frank perdem a permissão de manter a unidade familiar, sendo este o fator determinante para a migração ao esconderijo. O “Anexo Secreto” se localiza na casa de trás do edifício onde funcionava a empresa de Otto Frank, pai de Anne. Após os Frank vieram a família Van Pels – chamada por Anne de Van Daan – e, posteriormente, o dentista Fritz Pfeffer – citado como Alfred Dussel –.

Anne escreve sobre a complexa convivência dos oito integrantes diante das mais variadas limitações. Até os sons e movimentos dentro do Anexo eram controlados, refletindo um cuidado necessário para não chamar a atenção de vizinhos. A maioria das rotinas e ações eram pautadas antes na conveniência do que na vontade individual de cada um. Outro fator importante foi a ajuda prestada por intermediários como Miep e Bep, que traziam, dentre outros itens, livros e roupas.

O diário apresenta uma perspectiva diferente sobre as leis de Hitler e a Segunda Guerra Mundial. Um exemplo é a reflexão feita por Anne no seguinte trecho: “Os jornais estão cheios de notícias sobre invasão, e deixam todo mundo louco com declarações como: no caso de um inglês desembarcar na Holanda, os alemães farão todo o possível para defender o país, nem que seja preciso inundá-lo. Publicaram mapas da Holanda onde estão marcadas as possíveis áreas de inundação. Como grande parte de Amsterdã está incluída, nossa primeira pergunta foi: o que devemos fazer se a água na rua subir acima da cintura?”.

Também são abordadas diversas questões, como o que se passava com quem era pego pela Gestapo, os bombardeios e a convulsão social crescente. Contudo a maior relevância do manuscrito não está em seu âmbito exterior, mas sim em sua esfera interna. A guerra é citada e tem um grande valor, porém o diferencial é o relato do cotidiano das pessoas no Anexo.

Anne Frank registra o holocausto sob uma ótica única ao descrever algo tangível, capaz de ser compreendido. O diário confere uma dimensão humana sublime, uma vez que os integrantes escolhem viver ao invés de se deixar congelar pelo medo constante ou pela fatalidade da situação. Igualmente interessante é o amadurecimento emocional de Anne, suas irreverentes análises, a esperança no fim da guerra e saída em liberdade do esconderijo. O diário termina numa Terça-Feira, Primeiro de Agosto. Três dias depois um sargeto da SS encontra o Anexo.

4 Comments:

Blogger Manoela said...

Comento este logo após Julia me ligar querendo saber o que achei.

Bom, considerei um excelente 'overview' sobre a obra. Não chega a abordar os temas com mais profundidade, mas, com o perdão da simploriedade da construção, toca os tópicos mais profundos. Percebi pela forma de escrever da Julia que ela, como eu, preocupou-se menos com o contexto histórico e mais com a condição de Anne ao ler o livro. É compreensível: as edições mais recentes do Diário trazem folhas extras, censuradas por Otto Frank anteriormente. Nestas folhas, conhecemos uma Anne que ama, uma Anne que se assume banal, uma Anne que, por ser tão igual a qualquer outra garota, acaba sendo tão absurdamente diferente quando as meninas do lado de fora, incluídas na convulsão nazista, perdem qualquer esboço de humanidade.

O que há de mais interessante sobre Anne é que ela não tem nenhuma visão espetacular sobre o que acontece à sua volta e, boa parte das vezes, está muito preocupada com o próprio umbigo. Com esta postura, ela fortalece exatamente o que aquela Guerra deixou em suspenso: o correr normal da vida humana. Sem tantas palavras bonitas e sem pensamentos incríveis, ela nos faz lembrar a decadência provisória do indivíduo frente ao totalitarismo.

12:29 AM  
Blogger Manoela said...

Gostaria de adicionar que os temas não são abordados com mais profundidade muito em função do pouco espaço a que temos acesso quando postamos neste blog. Mas também é razoável: não poderíamos escrever teses por aqui.

12:34 AM  
Blogger Manoela said...

Acho que, mesmo implicitamente, Tiago retomou uma das grandes polêmicas da Academia. Há neutralidade? Pode existir neutralidade? Há algo PRÓXIMO da neutralidade?

Não, não há. O estudo desprovido de origens já é imparcial por natureza, visto que se considera capaz de decidir, objetivamente, o que seja ou não necessário. Mas, vejamos, quão subjetivo pode ser abandonar ou não as origens de um fato na hora de estudá-lo. E quantas outras vezes a suposta 'imparcialidade científica' apenas contribuiu para pacificar a penetração de parcialidades mil?

Tomemos o exemplo do Direito codificado, porque é aquele com que tenho tido mais contato - infelizmente. Quando se estabeleceu a Codificação, na Roma áurea, e quando esta se fortaleceu, na França napolêonica, acreditava-se possível filtrar as influências da sociedade e julgar um homem sob a igualdade de condições. O correr histórico deste cientificismo, assumindo o nome de positivismo, no entanto, em vez de consolidar o tratamento equivalente dos indivíduos, apenas iludiu uma maioria, submetendo-os tacitamente ao domínio de ao imparcial auto-interessado das elites.

Levando a exemplificação ao plano geral, a impressão que tenho é que toda proposta de imparcialidade científica esconde um comportamento ainda mais apaixonado do que aquele presente em um diário pessoal do período da guerra. Esta paixão, entretanto, acaba me soando cínica e grosseira, vista a aparente insustentabilidade das críticas a algo que se diz neutro.

5:40 PM  
Blogger Anna Carol said...

Li o Diário de Anne Frank aos 11 anos, e lembro-me de algumas passagens até hoje.

Tendo a discordar do Tiago. Os relatos dela não vão direto para os livros de História, mas servem para mostrar um ponto de vista individual. Acho que desse modo é muito mais clara a dimensão do que foi o evento, do que ele provocou na vida das pessoas, ao invés dos dados que nos contam sobre os MEGAtons da bomba atômica e dos MILHÕES de mortos nos campos de concentração, assim como o comentário da Tati fala: "veracidade tão honesta, cruel e ao mesmo tempo humana que os torna comovente e atraentes". Passar pela puberdade e pelo Holocausto ao mesmo tempo, dureza...

6:14 PM  

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