Thursday, January 19, 2006

Benedetti e uma reflexão sobre as artes

Pede-se a um leitor de conhecimento razoável que liste nomes de autores em Língua Espanhola. Começará pelo básico: Miguel de Cervantes, Jorge Luís Borges, Pablo Neruda, Isabel Allende. Se for um pouco mais curioso, falará em Mario Vargas-Llosa, em Julio Cortázar, em Federico García Lorca. Bastante interessado em Literatura e no idioma, lembrará ainda Octavio Paz, Carlos Fuentes, Manuel Montalbán Vasquez, Gabriela Mistral, Manuel Rivas, Manuel Puig. Não importa que não os tenha lido todos, é suficiente o teste de inconsciente coletivo: a possibilidade de alguém citar (ou sequer conhecer) Mario Orlando Hamlet Hardy Brenno Benedetti é tão grande quanto a possibilidade de os britânicos passarem a repudiar William Shakespeare ou de os norte-americanos deixarem de lado sua quase inexplicável paixão por Fitzgerald.
É uma omissão e tanto. Partindo do tema comum aos escritores ibero-americanos, as ditaduras militares, Benedetti consegue fugir às histórias demasiado políticas, técnicas, no que me acostumei chamar "Literatura de Externas". "De externas" porque nunca se sabe o que passa de fato entre os personagens, visto que tão ocupados estão em organizar golpes, angariar poder, calar subversivos. Fala de tudo isso, é verdade, mas gosta de fazer interferirem em suas histórias mães, pais, esposas de corpos quentes, jornalistas responsáveis por horóscopos de periódicos locais. Gosta de dizer, em suas entrevistas, ter a certeza de que poema algum trará a revolução, e por isto se saber defensor de utopias. É a forma modesta que encontra para esquivar-se da beleza incontestável (e da força, por que não?) de sua poesia e de sua prosa.
O vício das muitas gerações do século XX, a política, acaba por criar desses fenômenos. Um homem pensa que nada faz pelo mundo até o momento de chegar ao poder ou pegar em armas ou formar uma sociedade alternativa (às vezes tão hipócrita quanto aquela original). Mas as artes são campos, sete campos - talvez oito, pois algum dia nos convencem de vez que futebol também é arte. São revoluções fechadas, e por isso possivelmente as mais verdadeiras. São íntimas. Até mesmo o dadaísmo é íntimo, como tudo para que falta uma descrição. A política, salvo as discussões que nela criamos, é simples, pode ser traçada em fatos. Em 1968, o General Costa e Silva decretou o AI-5. Em 1989, Fernando Collor de Mello foi eleito presidente do Brasil. Em 2005, o "mensalão" tornou-se sinônimo de mais uma decepção política brasileira. Se há alguma graça na política, é porque a transformamos em arte. Nos discursos, floreados, empostados, breves: o teatro. Nas campanhas ou nos manifestos: a música. Nas lutas de rua, na boca-de-urna: a dança. O presidente coloca a faixa, o povo se veste de negro, uma revolução no Irã: o cinema. A análise do discurso, a persuasão: literatura. Militares contra civis: escultura. Uma vitória de Napoleão: pintura. As artes são a expressão (positiva ou negativa) da emoção.
Afora isso, têm um significado histórico gigantesco. Os desenhos dos egípcios desnudam parte do mistério a respeito de vidas cotidianas datadas de mais de dois milênios. A Bíblia, dispensada a discussão sobre seu teor religioso, é um livro de grandes e de pequenas histórias contadas com palavras escolhidas a dedo. Um álbum de uma branca com voz de negra, Janis Joplin, é o suficiente para nos remeter a um tempo de luta por uma real democracia racial nos Estados Unidos. Por alguma razão, se a política dificilmente se altera, e se os termos permanecem os mesmos, são as artes as únicas a refletir de modo cru e claro os pensamentos de uma sociedade (rica, pobre, sexista, democrática ou racista). Assim, a alma latino-americana presente nos livros de Mario Benedetti pode não ser a borboleta a desencadear um terremoto em outro ponto do globo, mas cria pequenos tremores de prazer e de esperança em quem com ela tem contato.