Política do Pão e do Circo
Embora esta pequena descrição remonte à história antiga da humanidade, podemos observar as mesmas medidas sendo tomadas na atualidade- reformuladas, porém com a mesma essência. Exemplo inquestionável disto é a forma como os jogos de futebol foram explorados pelas ditaduras contemporâneas, alienando populações e mascarando as realidades cruéis de seus governos.
Em 1934 foi realizada a segunda Copa do Mundo de Futebol, na Itália de Mussolini. Il Duce aproveitou-se do evento para a promoção de seu regime, incluindo meios escusos para tanto: juízes foram pressionados e atletas foram naturalizados italianos para vestirem a camisa da Azzura, para a tristeza de Jules Rimet, que não desejava ver sua idéia transformada em forma de propaganda política. Nesse momento, a Europa já estava instável, pela chegada ao poder de outro regime totalitário na Alemanha. A Grande Guerra que se seguiria -intrinsecamente ligada a tais regimes- impediu que as copas de 1942 e 1946 fossem realizadas.
Em 1950, o retorno às atividades se deu no único país candidato a sediar os jogos: o Brasil, distante da destruição bélica. Os ingleses, inventores do futebol, aproveitaram-se do ensejo para demonstrar sua força e a recuperação frente aos bombardeios nazistas. Entretanto, os donos da casa eram os favoritos, e mesmo assim, amargaram derrota contra os Uruguaios no maior palco do mundo. A humilhação só viria a ser superada com as glórias em 58, 62 e 70.
A vitória de 1970 teve um significado político, além da conquista definitiva da taça Jules Rimet. Com a primeira transmissão via satélite para todo mundo a Copa pôde ser acompanhada por milhões de espectadores no país. A ditadura vigente no Brasil utilizou o nacionalismo despertado pelo esporte para reforçar sua imagem e posição internamente e no exterior exaltando o triunfo da seleção nacional como símbolo de progresso e sucesso do regime.
Médici na presidência da república (1970-1974) soube habilmente explorar o momento de êxtase nacional. Martelavam-se bordões como "Milagre brasileiro", "Ninguém segura este país" e aos opositores, uma rude intimação: "Brasil: ame-o ou deixe-o". Nessa época, a censura aos meios de comunicação extremamente implacável, a perseguição aos movimentos democráticos foi mais cruel e o desprezo pelo Congresso e pelo Judiciário maior do que em todos os 21 anos da ditadura. Mas os olhos só viam as lojas repletas de mercadorias de crédito fácil e a euforia nacional cegava os olhos críticos da classe media que acabou respaldando quase incondicionalmente a “gloria” do regime, materializada na conquista da Copa do Mundo e o “progresso” a ela atribuída.
Paralelamente, em 1974 no país vizinho, morre Juan Domingo Perón, líder carismático argentino. O fato faz precipitar no país uma crise econômica e social sem precedentes, que culminam com o golpe militar de 1976. O mundial da Argentina estava com data marcada para 1978. A opinião pública internacional manifestou-se contra a realização do evento no país e uma forte corrente dentro da FIFA tentou tirar a Copa dos argentinos. Foi necessário um acordo de trégua entre os militares e a guerrilha, que prometeram solenemente não praticar atos terroristas durante o campeonato, para que finalmente este pudesse ser realizado.
Em maio de 1977, vésperas da Copa do Mundo, com o país imerso no clima dos preparativos para o cenário do “espetáculo” e quando já se cogitava da sucessão de Videla, líder militar, os chefes do estado maior das forças armadas se reúnem e decidem pela execução de todos os seqüestradores políticos que estavam presos em campos de concentração, tirando proveito da nevoa que cobria os olhares da população comum. A operação de extermínio foi denominada “Natal Feliz” e durou até meados de março do ano seguinte.
Ao fim da competição o título da Argentina, primeiro de sua história, serviu mais uma vez como propaganda a um regime autoritário e também como conforto e ao mesmo tempo prêmio para a população por suportar as mazelas do sistema.
Mais recentemente, a velha e recorrente política rearmou o circo mais uma vez, voltando à tona no cenário mundial. O palco do novo espetáculo foi o Haiti, país mais pobre de toda a América. Imerso em inúmeras guerras civis há décadas e onde a miséria e a pobreza são latentes.
Novamente o futebol foi utilizado como instrumento de manipulação de massas. Com o argumento de tratar-se de um “jogo da paz”, o Brasil, encarregado da missão de restabelecimento da ordem no já arrasado Haiti, enviou sua seleção nacional, os “deuses” do futebol, para um espetáculo, que serviu para mascarar uma realidade de face dupla. Uma delas voltada para os haitianos que acabou por inebriar a opinião pública de sua população encantada com a “generosidade” do povo brasileiro e, no sentido de fazê-los conformarem-se com o papel de agente passivo no processo de “pacificação” do seu próprio país e esquecer a situação caótica e desesperadora que vivem. E a outra voltada para nós brasileiros, cuja realidade social não é menos perturbadora no sertão ou nas favelas. Ainda assim, nossa seleção de futebol serviu mais uma vez de propaganda de progresso e prosperidade de uma nação, a real termo, cheia de contrastes e de problemas estruturais críticos. Mais uma vez o brasileiro se sentiu acometido por um nacionalismo ufanista e deturpador da realidade, nos fazendo sentir um povo evoluído ou superior e livre de problemas básicos como a fome ou o analfabetismo. Podemos concluir parafraseando o compositor Caetano Veloso, que sabiamente proferiu em seus versos uma sentença às vezes esquecida por nós em situações que provocam perplexidade e esvaziamento do nosso espírito crítico como essas:
- “O Haiti é aqui”.
Marcia Cristina Pulcherio e
Verônica Azzi